"Corpos do medo em "Refluxo" de José Saramago", Lígia Bernardino
"Corpos do medo em "Refluxo" de José Saramago", Lígia Bernardino
A utopia de um mundo humanamente respirável, o mesmo será dizer de um mundo onde os seres humanos possam construir um ethosdignificante paraa sua condição, acompanha a obra de José Saramago. Paralelamente, nota-se uma desesperança sob a forma de dúvida de que tal mundo seja concretizável, donde a co-habitação de um tom tão sarcástico quanto melancólico em tantas obras deste autor. “Refluxo”, um dos seis contos de Objecto quase(1978), reúne estas qualidades, expondo uma realidade de poder soberano que dita o confinamento da morte física através da construção de um cemitério de proporções gi-gantescas. Até à conclusão desse projeto, desenham-se corpos feitos de cadáveres futuros ou passados, bem como todo um maquinismo que gera uma sociedade conformada e obe-diente, mas também construtora de dinâmicas próprias.O nome deste conto incita a uma interpretação dúplice: o refluxo pressupõe a existên-cia de dois movimentos contrários de aproximação e distanciamento, ou um movimento orgânico involuntário reversor do que seria natural. Um e outro sentidos compaginam o cerne deste conto, que parte de uma desmesurada ordem de um rei sem nome num país sem nome para a construção de uma estrutura absurda e reveladora dos mecanismos so-ciais. Em causa estão desde logo os corpos, não apenas do rei e do medo que o percorre ao mínimo indício da morte, mas dos cadáveres a transladar à sua ordem. Nesse percurso, esbatem-se as fronteiras entre vivos e mortos, entre corpos humanos e outros, num ques-tionamento ontológicoacerca dos limites da própria espécie humana.O conto avança seguindo uma estrutura linear, apesar dainsensatez que desde o início se percebe, numa nítida ressonância kafkiana. Note-se que,décadas antes,Franz Kafka escreveu um conto denominado “Uma mensagem imperial” (1919) em que um imperador, no seu leito de morte, transmite uma mensagem enigmática “a ti, ao súbdito solitário e lastimável” (2004, p.246), levadapor um mensageiro que se perde na vasta rede de salas e corredores, ao ponto de nem milénios chegarem para os percorrer: a comunicaçãoentre soberano e súbditos inviabiliza-se. (excerpt)
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